SERVOS
INÚTEIS?
A palavra de Jesus tanto nos encanta como nos
desconcerta. Algumas passagens, quando comparadas entre si, parecem
contraditórias, ao ponto de nos indicar caminhos opostos. Em certos momentos do Evangelho, tudo parece
claro, enquanto que em outros Jesus parece fazer questão de nos propor enigmas,
em um contínuo movimento de revelação e ocultação.
A parábola do Evangelho de hoje (Lc 17, 7-10) é paradigmática.
Jesus propõe uma parábola composta apenas de perguntas. Questiona se as pessoas
tratam seus servos de maneira especial pelo simples fato de eles cumprirem o
que lhes foi ordenado. Da mesma maneira, os seguidores de Jesus não devem esperar
retribuição, mas apenas se considerarem “servos inúteis”. Sem dúvida, é uma
palavra que nos incomoda e até nos choca, pois o próprio Jesus afirma: “Já não
os chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu senhor faz. Em vez disso,
eu os tenho chamado amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai eu lhes tornei
conhecido.” (Jo 15, 15) Como isso se explica, então?
Jesus
expõe uma questão concreta, que denuncia a hipocrisia das pessoas. Os
discípulos, como os fariseus, estavam sempre à espera de uma recompensa pelas
obras de justiça que eles praticavam. Fizemos o bem, merecemos nosso salário. Largamos
tudo, o que receberemos em troca? Nem que seja um reconhecimento, um afago, um
favor. Esse é o pensamento. Porém, o mestre
incomoda. Como vocês tratam seus servos? Vocês lhes dão algo em troca pelas
tarefas que lhes competem? Vocês lhes concedem um tratamento honroso,
tratando-lhes como amigos ou até mesmo como alguém muito importante, uma
autoridade? Aqui fecha a alegoria: se vocês se declaram meus discípulos, por
que esperam um tratamento de mestres?
Jesus
busca sempre levar seus discípulos à reflexão. Como mestre libertador, não quer
impor dogmas ou regras de conduta. Ele sabe que somente pela verdadeira
metanoia – mudança de mentalidade – o ser humano pode ser salvo. Jesus veio
instaurar um reino onde os maiores são os que servem, os nobres são os
pequeninos. No seu reinado, as ações são realizadas por amor, não por interesse.
Os servos são amigos do rei porque lhe servem por prazer e gratidão. O próprio
mestre serve seus discípulos e revela seus segredos a esses que são seus
amigos.
Para
vivermos esse reino é necessária a fé. Por isso, sabiamente os discípulos
suplicam pela fé. O próprio profeta Habacuc proclamara: “O justo viverá da fé”
Baseado nesta passagem, São Paulo vai desenvolver sua doutrina da graça no
livro de Romanos. As obras não podem nos justificar, pois é Deus quem nos
justifica. As obras só fazem sentido se unidas à fé em um Deus que é rico em
misericórdia e nos salva gratuitamente. Ao realizarmos boas ações, fazemos por
consequência da fé e do Espírito Santo que age em nós. Somos simplesmente
servos inúteis.
Para
vivermos isso, precisamos do auxílio da graça. Peçamos, portanto, como nos
exorta Paulo a Timóteo, o reavivar da chama do dom de Deus. Que Ele reinflame o
carisma em nós, nos liberte da timidez, da vergonha e da falsa humildade.
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